Já foi dito que nosso país carece de heróis. Por aqui, parece mais fácil cultuar os grandes nomes de outros países, muitas vezes sem chegar a compreender as circunstâncias que envolveram seus feitos e as sutilezas de suas personalidades. Na realidade, nossos heróis muitas vezes estão ao nosso lado e só nos falta percepção para compreender a dimensão de suas realizações e o alcance de suas ações.
João Augusto do Amaral Gurgel foi um desses homens que decidiram não passar tranquilamente pela vida e, buscando desafios, deixaram suas marcas na História. Contra todos os conselhos e tudo o que se poderia considerar bom senso, cinquenta anos atrás, ele resolveu que iria dedicar sua vida a fabricar automóveis. E foi o que fez.
Contra a corrente - Gurgel fabricou mais de quarenta mil carros. Passo a passo, evoluiu de simples carrinhos para crianças para um jipe de design simples e funcional e daí para um precursor dos modernos utilitários esportivos, o Carajás. Há quase 30 anos, fez carros elétricos. E era incansavelmente criativo, descobrindo e desenvolvendo soluções tecnológicas para qualquer assunto com que se preocupasse.
Controverso, ele se colocou contra a difusão do uso do álcool como combustível, que dominou o Brasil do final da década de 1970 ao final dos anos 80. Para ele, o álcool era um combustível pouco eficiente e o custo para produzi-lo – financeiro e social – era muito elevado. A terra deveria ser usada para produzir alimentos, em vez de “comida para carros”. Certo ou errado, o fato é que nosso primeiro programa do álcool entrou em colapso quando os preços do açúcar subiram no mercado internacional e os usineiros, seus grandes beneficiários, decidiram que era melhor para eles ir atrás dos dólares fáceis do que abastecer nossa frota. Demorou quase vinte anos para a tecnologia do flex resgatar a confiança dos brasileiros no combustível verde.
Nos anos 70 e 80, poucos ousavam contrariar a política do governo, ainda sob controle militar. Mas não foi essa a atitude mais ousada de Gurgel. Dono de uma indústria consolidada, produzindo e vendendo alguns milhares de carros por ano, ele decidiu dar um passo ainda maior: criar um carro popular, com tecnologia simples e barata. Para muitos, um empreendimento impossível, nada mais do que um sonho inatingível. Sem apoio, sem capital próprio, o empresário virou, mexeu, agitou e colocou no mercado o pequeno BR800 – rústico, funcional e, por falta de escala de produção, um tanto caro para o que oferecia.
Exemplo - Não falta quem veja na quebra da Gurgel, pouco depois, uma conspiração das grandes fabricantes, supostamente preocupadas com o surgimento de um concorrente. É um ponto de vista mais romântico do que real – os planos dele previam fabricar não mais de 40 mil carros por ano, num mercado que, na época, era vinte vezes maior. Gurgel errou em suas projeções, não previu o surgimento dos carros populares, com motor 1.0 e impostos reduzidos e talvez tenha errado, também, por contrariar interesses poderosos, ao se manifestar contra o álcool. Não é incomum que empresas fracassem ao dar um grande passo para tentar crescer e foi isso o que aconteceu.
O importante, hoje, após sua morte, é o exemplo. O exemplo da ousadia, da teimosia, do entusiasmo. Tendo todas as condições financeiras e intelectuais para ter uma vida próspera e tranquila, Gurgel decidiu perseguir seu sonho e torná-lo realidade. Precisamos de mais gente como ele.
Quando o petróleo ficou barato
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Os primeiros automóveis parecidos com os de hoje enfrentavam a resistência dos que confiavam mais nos cavalos e a de outros meios de propulsão. Carros a vapor, por exemplo, utilizavam uma tecnologia desenvolvida havia mais de um século no transporte ferroviário e naval. E tinham um desempenho superior às primeiras caranguejolas movidas a petróleo.
Até mesmo o motor elétrico, apesar de depender de baterias de chumbo e ácido, parecia ter mais futuro. Santos-Dumont, por exemplo, apesar de possuir mais de um automóvel – foi dono de vários dos primeiros Peugeots e Renaults, preferia andar por Paris, no dia-a-dia, num pequeno carro elétrico que comprou nos Estados Unidos.
Mas, em janeiro de 1901, um acontecimento acabou levou à rápida decadência da indústria do automóvel a vapor ou a eletricidade. Na cidade de Beaumont, no estado americano do Texas, foi encontrado o primeiro grande poço de petróleo. Não demorou muito e o preço da gasolina desabou e o combustível passou a ser encontrado por toda a parte.
A descoberta de petróleo nos Estados Unidos foi um daqueles acontecimentos históricos que passam despercebidos, mas contribuem para mudar os rumos da humanidade. Se não houvesse ocorrido, o Ford Modelo T, que tornou o automóvel acessível para o homem comum, não teria sido viável.
Boa parte do entusiasmo da indústria pelo carro elétrico, hoje, é viabilizado pela tecnologia das baterias desenvolvidas para os telefones celulares. Outras formas de armazenagem de energia estão sendo pesquisadas e desenvolvidas mas os projetos das grandes fabricantes se baseiam na prosaica bateria que, há poucos anos, servia apenas para podermos conversar por mais tempo de qualquer lugar.
Como no início do século passado, quando o automóvel foi acolhido com entusiasmo por uma população cansada de viver, nas grandes cidades, no meio de toneladas de estrume e urina dos cavalos, quando não de animais mortos abandonados nas vias públicas, o mundo parece pronto para acolher novas opções de transporte. Talvez em algum lugar, por aí, esteja para acontecer, ou já tenha acontecido, algum fato semelhante à descoberta do petróleo no Texas. E o mundo nunca mais será o mesmo.
Quem vai comprar?
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Deixando de fora o abandono da suntuosidade e a falta de grandes espetáculos nos lançamentos, parece ter havido um equívoco generalizado sobre as grandes atrações do evento. Muitos jornalistas e órgãos da imprensa atribuíram à situação atual o grande número de novidades e propostas envolvendo carros elétricos de todos os tipos.
“Somos elétricos” era o que dizia um dos cartazes da manifestação orquestrada pela General Motors com seus empregados, ao lado da sugestiva mensagem “Estamos aqui para ficar”. De certa forma previsível, a derrocada financeira só mostrou sua força nos meses finais do ano passado e, quem tem noção de como acontecem as coisas na indústria sabe que novos projetos, ainda mais quando implicam grandes mudanças tecnológicas, não são decididos nem executados em prazo curto. A busca por carros mais eficientes, sejam elétricos “puros” ou híbridos, se deve a outra crise, a dos preços do petróleo, que vinha assustando os americanos há alguns anos, exigindo soluções.
As dificuldades financeiras acabaram acionando um freio natural do mercado: com menos dinheiro disponível, caiu o consumo da gasolina e veio abaixo o preço dos combustíveis. Em poucos meses, os americanos deixaram de pagar mais de US$ 4 por galão de gasolina, para despender em torno de US$ 1,7. Com os preços assim reduzidos, o grande incentivo a favor dos novos carros, pelo menos do ponto de vista financeiro, parece ter desaparecido.
Sem desmerecer o mérito dos híbridos e elétricos quanto à economia de recursos que continuam escassos e à redução das emissões de gases nocivos à saúde e ao ambiente, parece que a concentração de investimentos na pesquisa e desenvolvimento desses carros é um peso a mais a puxar para o fundo os grandes fabricantes. As versões híbridas de carros atuais custam, em média, 30% a mais do que os modelos tradicionais. O Ford Fusion, conhecido por nós, é vendido nos EUA por cerca de US$ 20 mil na sua versão mais econômica – o Fusion híbrido terá preços a partir de US$ 27 mil.
Com os atuais preços da gasolina, quem comprar o novo modelo irá economizar, em média, US$ 250 por ano em gastos com combustível. Para recuperar a diferença de preço, o consumidor levará quase três décadas. O mesmo ocorre com outros híbridos semelhantes, como o Chevrolet Malibu ou o Toyota Camry. O bem sucedido Toyota Prius, primeiro híbrido a ser vendido em massa, um sub-compacto, custa US$ 22 mil, bem mais caro do que veículos do mesmo porte e acabamento. O sedã Volt, apontado como a arma da redenção da GM, irá custar o preço de um Cadillac, US$ 40 mil, oferecendo confortos e desempenho de um sedã de equivalente ao Focus.
Tudo bem: a cada dia aumenta o número de pessoas preocupadas com o futuro e dispostas a um sacrifício financeiro para tornar o mundo melhor. Mas, num cenário que aponta para dinheiro curto nos próximos anos, o consumidor deverá optar por resolver seus problemas imediatos. Infelizmente, parece que a trajetória da popularização do carro elétrico terá um início mais lento do que se imaginava.O Fordinho e a crise
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Mil novecentos e vinte e nove foi um ano trágico para a economia mundial. Tudo começou pelo colapso da bolsa de valores de Nova York, que levou os Estados Unidos a um longo período de recessão. Os americanos eram os maiores importadores de café do mundo e o Brasil, o maior produtor. Resultado: a crise americana logo chegou ao nosso país.
Durante a maior parte da década de 1920 o Brasil viveu uma boa fase, que se refletiu diretamente no aumento vertiginoso do número de automóveis em nossas ruas e estradas. No final daqueles anos, a frota brasileira havia chegado a 57 mil veículos, o que hoje pode parecer pouco mas era bastante se comparado aos menos de 10 mil do início do período.
O surgimento do Ford Modelo T, um carro acessível à nossa nascente classe média, contribuiu muito com esse panorama. Em 1925, a Ford vendeu no Brasil mais de 24 mil carros. No mesmo ano, a General Motors se instalava por aqui e, além das duas gigantes americanas, várias marcas européias, como a Fiat, Renault e Mercedes eram comercializadas no país.
Popularização - Aos poucos, o automóvel deixava de ser uma curiosidade mecânica ou um privilégio de grandes fazendeiros ou industriais. Médicos, engenheiros e advogados já podiam ter seus carros e o panorama das cidades, antes dominado por bondes e carros puxados por cavalos, nunca mais foi o mesmo.
O carro influenciou até na política. Um dos lemas de campanha do presidente Washington Luiz, que tomou posse em 1926, foi “governar é abrir estradas”. Ainda hoje há quem ache uma proposta absurda, num país que então ainda não tinha 50 mil automóveis mas, pensando bem, ele estava apenas antevendo necessidade de rodovias diante do fenômeno que, na década anterior, havia ocorrido nos Estados Unidos, onde a frota quase dobrou de tamanho a cada ano, durante quase um decênio.
Mais um pouco, com toda a certeza, deixaríamos de apenas montar os carros produzidos no exterior para ter nossas próprias fábricas. Mas havia uma pedra no caminho e, em 1930, os carros que eram vendidos às dezenas de milhares passaram a ser comercializados em centenas de unidades. Por causa disso, o Fordinho parou no tempo: praticamente só restaram os vendidos em 1929.
Brecada - Houve milhares de demissões, centenas de falências, muitas vidas tiveram seus rumos alterados. Até Washington Luiz acabou deposto, numa revolução que, de forma simplória, é explicada como uma disputa entre caciques regionais, mas em que o mau momento econômico deve ter tido um papel importante.
O sonho do automóvel brasileiro teve que esperar ainda pelo final da Segunda Guerra Mundial, antes de materializar-se timidamente no final dos anos 50. Foram quase trinta anos de espera, que nos custaram caro. Para quem acha que a globalização foi inventada na década de 90, o drama que foi desencadeado em 1929 é uma lição que não deve ser esquecida.
A teimosa engenharia do senhor Gurgel
Mais do que um engenheiro, João Gurgel é um inventor. Um homem que já construiu um revólver a gasolina, um dispositivo para traçar hipérboles, que projetou uma cidade circular e fabrica automóveis movidos a gasolina, álcool e eletricidade. Que já foi considerado louco mas provou ser sensato.
No final de 1949, ao invés de apresentar o projeto de um guindaste como trabalho de conclusão do curso de engenharia mecânica na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, o estudante João Augusto Conrado do Amaral Gurgel apresentou o de um carro com motor de dois cilindros.
Quase foi reprovado. O professor nem quis olhar aquela "bobagem" e arrematou a desaprovação com uma frase que Gurgel nunca mais esqueceu: "Automóvel não se constrói. Se compra. Põe isso na cabeça".
O estudante fez às pressas o projeto do guindaste, formou-se engenheiro, mas o conselho do professor foi tão inútil quanto desafiador: Gurgel empenhou-se tanto em provar o contrário que hoje é um dos grandes fabricantes brasileiros de veículos.
Entre o projeto de seu carro de dois cilindros e o de seu último lançamento, o XEF, a vida profissional desse paulista de quase 57 anos foi marcada pela teimosia, pela insistência em inovar, em criar soluções novas para problemas tão distintos quanto um carro elétrico e a estrutura de uma cidade, por exemplo.
Não foi sempre que conseguiu ser compreendido, mas algumas de suas idéias — como o próprio carro elétrico, do qual Gurgel é o único fabricante brasileiro — foram bem-sucedidas, comprovando que ele não é apenas um lunático, como o chamavam há alguns anos. Teimoso, sim. E muito.
Foi com um mês de teimosia — e, naturalmente, seus conhecimentos de química e metalurgia — que Gurgel e um amigo descobriram como reproduzir o processo de anodização do aluminio, durante os anos 40. Isso, até então, era uma exclusividade da indústria norte-americana, que os dois pretendiam usar no tratamento de pistões; mas um colar de alumínio anodizado que uma tia de Gurgel trouxe da França mudou os rumos da experiência: ele e o amigo acabaram ganhando muito dinheiro fabricando colares idênticos.
A LANCHA ANFIBIA
Foi com parte desse dinheiro que Gurgel construiu uma lancha anfíbia, com motor traseiro de avião (de 70 cavalos), três rodas e uma hélice. Seu pai se arrependeria amargamente de ter emprestado a garagem para a construção desse engenho nunca visto pelas ruas de São Paulo: quando ele saiu pelo Jardim América, fazendo um barulho infernal, por pouco a polícia não fez a primeira apreensão de um objeto não identificado. Gurgel teve de se comprometer a nunca mais sair nas ruas com aquilo. Ainda passeou com a lancha na represa de Guarapiranga, mas depois vendeu-a.
Sua paixão pelos veículos, particularmente pelo automóvel, vem desde os três anos, quando Gurgel subia no estribo, passava para o pára-lama, o capô e daí para cima da capota do bravo Ford modelo T de seu pai.
Um dia, deu a partida e jogou o carro contra a parede da garagem.
Aos nove anos, já estava bem claro que aquele menino não seria advogado, como o pai; muito menos fazendeiro ou fabricante de calçados, como os avós. Ele gostava de ler livros de física e mecânica, mexia em rádios, ia no ferro-velho buscar câmbios estragados para desmontar em casa... O quarto vivia cheio de trastes; de vez em quando, para o bem dos estudos regulares, seu pai ia lá e fazia uma faxina geral.
Ali Gurgel transformava triciclos em bicicletas; ficava de olho na marcenaria ao lado da casa para depois construir seus próprios piões e bilboquês. Franca (SP), onde nasceu e morava, era uma cidade pequena, não tinha mais de 20.000 habitantes.
Gurgel tem agradáveis recordações dessa época: os almoços com mais de setenta pessoas na casa do avô; a visita que aos 6 anos fez a seu pai, capitão das tropas paulistas, numa frente de batalha da Revolução de 32; os pagamentos que fazia aos primos para que fossem ao cinema assistir e depois lhe contar os episódios de Flash Gordon, que perdia quando ficava de castigo... Convencido de que boa educação era o que podia deixar de melhor para os filhos, seu pai exigia que todos estudassem.
Deu certo: os quatro filhos se formariam engenheiros na Politécnica; a filha casaria com um engenheiro. E Joáo Augusto, mais do que a vocação de engenheiro, levou para a vida adulta a de inventor:
— Estudando muito pode-se chegar a tocar piano muito bem — diz ele. — Mas ninguém vai compor alguma coisa se não tiver um dom. Eu acho que tenho esse dom na mecânica. Aos 13 anos, durante a guerra, ficava fascinado com o desenvolvimento técnico dos alemães — as bombas V1 e V2, os aviões, a turbina... Aquilo que eu antes via no Flash Gordon estava se tornando realidade. Desde essa época cismei que ia construir um avião, e isso ainda é um sonho meu.
Quando deixou o ginásio marista de Franca e foi estudar em Araraquara, aos 16 anos, Gurgel inventou um revólver a gasolína: "Eu injetava a gasolina no cilindro e usava uma vela de ignição. É claro que esse revólver não tinha a potência da pólvora, mas atirava". Quando foi morar com uma tia, na capital, antes do vestibular para a Escola Politécnica, desenvolveu um instrumento para traçar curvas elípticas.
Quando era o engenheiro mais bem pago da Ford,
ele se demitiu para fazer sua fábrica.
O ESPORTISTA
Nessa época de estudante em São Paulo, Gurgel também encontrava tempo para jogar tênis e ganhar medalhas de salto em altura. Um esportista, nada de boemia.
Magro, 58 quilos, Gurgel é um homem bem conservado, pensa e se movimenta com agilidade. Chega a trabalhar doze horas por dia. Tem algo de missionário ou até caudilhesco. Anda por dentro de sua fábrica examinando tudo de perto, tocando, perguntando. Não fuma e fez uma verdadeira guerra santa contra o cigarro. Tentou de tudo, despediu gente, criou códigos, revezamentos, cabines especiais para fumantes, deu conselhos — e, no fim das contas, deve ter salvo muitos pulmões.
Hoje, ele ainda é capaz de sair de casa à noite e ir sozinho para a fábrica fazer alguma experiência:
— A satisfação psicológica — explica Gurgel — é uma espécie de energia. A mesma que faz um cara pular três dias no carnaval e depois cansar com uma corridinha à toa. Eu sou movido a entusiasmo.
Ainda durante o curso na Politécnica, ele trabalhou no Instituto de Aeronáutica do IPT — e lá cresceu o fascínio por turbinas a jato. Formado, seu primeiro emprego foi na Cobrasma, como chefe do departamento de locomotivas a diesel. Nos elevadores Atlas, ficou apenas uma semana: quis arriscar algumas idéias novas sobre faiscamento de motores e o chefe achou que era muito cedo para palpites. Pediu demissão e pouco depois estava na General Motors, através da qual conseguiu uma bolsa para estudar engenharia automobilística na fábrica da Buick, perto de Detroit, nos Estados Unidos.
No Brasil dessa época, os carros eram apenas montados; lá, eles eram fabricados. Gurgel ficou deslumbrado: "Os Estados Unidos me pareceram um país de fadas". As dificuldades com o inglês não impediram que ele evoluisse nos estudos e ganhasse uma menção honrosa por um projeto que diminuía de uma semana para um dia o tempo dos cálculos de moldes.
Gurgel voltou ao Brasil em 53. Trabalhou nos projetos das fábricas da GM e depois da Ford. Casou com 31 anos; sua mulher, Carolina, tinha 17. Teve três filhos: Fernando, que hoje tem 24 anos, é quintanista da Politécnica e nas horas vagas ajuda o pai na fábrica; Cristina, de 22, optou por estudar administração de empresas; e Maria Cecilia, de 17, está terminando o colegial. "Em 58, quando nasceu o Fernando — conta Gurgel — eu decidi que estava na hora de ficar independente. Foi um choque, pois eu era o engenheiro mais bem pago da Ford e tinha todas as regalias como assistente de diretoria. Antes, eu era parte da engrenagem de uma empresa que tinha 600, 700 mil empregados: depois, me tornei o cabeça de uma pequena empresa. Me senti muito mais feliz, apesar das dificuldades, com a possibilidade de pensar uma coisa à noite e começar a realizá-la no outro dia de manhã.
Essa pequena empresa de Gurgel — a Moplast, que fazia moldagem de plásticos — começou a colocar nas ruas de São Paulo os primeiros luminosos de acrílico do Brasil, substituindo os tradicionais tubos de neon. Na verdade, esse ramo se constituia apenas em um meio de ganhar dinheiro. O que Gurgel queria mesmo era construir automóveis.
Uma das idéias de Gurgel: a cidade circular,
com muito verde e pouca poluição.
Além dos luminosos, começou a fazer miniaturas de Karman Ghias para crianças. Até o dia em que conseguiu convencer a Volkswagen a lhe fornecer plataformas e daí para a frente a produção foi de carros de verdade, como sempre havia sonhado.
Durante esses três anos, de 61 a 64 (quando vendeu a Moplast), Gurgel também entrou num terreno novo — o da competição.
Com uma equipe de karts que tinha pilotos como Emerson Fittipaldi e Moco, ele chegou a ganhar todos os campeonatos realizados no pais, mas as sucessivas viagens, a correria, acabaram atrapalhando sua vida familiar.
— Aquilo era um pequeno circo, uma Fórmula 1 em pequena escala — conta ele. — Na realidade, eu acredito na competição apenas como pesquisa, não como negócio. Quando o Emerson se meteu a fazer um carro, eu disse a ele que aquilo era uma bobagem, que ele devia continuar correndo para os outros. Se para as grandes fábricas o retorno já é difícil, para quem não tem nada, pior ainda.
CIDADE DO FUTURO
Em 69, ao lado da sua concessionária Volkswagen em São Paulo, Gurgel fundou uma fábrica com o seu nome; e três anos depois estava fabricando carros com plataforma, motor e câmbio VW. Em 73, depois de conhecer uma indústria de fibra de vidro de Rio Claro, resolveu transferir sua fábrica para lá. Estava cansado da confusão de São Paulo, do aperto, do barulho — "da barbaridade que é aquilo lá". Propôs à Prefeitura aquela "loucura" que fazia sentido: fabricar carros elétricos, transformar Rio Claro numa espécie de protótipo ou cobaia da cidade do futuro. Sua idéia: instalar tomadas de reabastecimento de baterias em volta da praça, como se fossem orelhões ou caixas de correio.
— Isso foi antes da crise do petróleo, em julho de 73. A crise foi em novembro. No início, a turma achava uma loucura; quando você tem uma idéia nova, a reação é muito grande. Antes, quando eu só queria fabricar carros, muita gente fazia pressão sobre minha mulher para que ela me tirasse isso da cabeça. Diziam que fabricar automóveis era coisa para multinacional. Quando eu quis fabricar carros elétricos, então, nem se fala. Todo mundo dizia: "Pronto, agora ele endoidou de vez".
A Prefeitura de Rio Claro emprestou 500.000 cruzeiros e fez a terraplenagem de uma área de 360.000 m2 onde só havia mato, capim e vacas pastando. — Nem luz elétrica havia por aqui — conta Gurgel. — Depois, fui ao BNDE e consegui 7,5 milhões para terminar a fábrica, o menor empréstimo que o BNDE já fez até hoje. Eles até perguntaram se eu não queria levar mais; não aceitei porque não teria como pagar. As dificuldades foram muitas, nosso plano foi boicotado por todos os lados. Hoje, a Gurgel é a pioneira na fabricação de carros elétricos na América Latina e a primeira a exportar carros a álcool.
— A situação melhorou, mas ainda temos pouco apoio — continua ele. — O carro elétrico é uma parada, é difícil vender uma coisa nova. Essa mesma experiência eu tive quando comecei a fabricar os luminosos de plástico e acrilico para substituir o neon. Todo mundo achava que ia cair, quebrar, derreter. Quando você tem uma idéia e não realizou nada, te consideram um louco. Quando já realizou alguma coisa, a loucura já não é tão grande. Até que acabam dizendo: "Ele tem visão".
A Gurgel deu certo e hoje os planos são muitos: já está no BNDE um projeto para ampliar a empresa, passando dos atuais 140/150 carros por mês para uma produção em torno de 320; está comprado um terreno no Panamá, onde talvez ainda este ano seja iniciada a construção de uma fábrica que produzirá veículos Gurgel para o mercado do Caribe; e um dia, não se sabe quando, a Gurgel precisará ter o seu próprio motor e a sua própria mecânica, para continuar crescendo.
Ele próprio fiscaliza a fábrica, olhando tudo de perto,
examinando, perguntando...
Gurgel pensa também em abrir o capital da empresa: "Acho muita responsabilidade entregar a coisa na mão de um filho. Talvez fosse um presente de grego para o meu filho".
E ainda há outros projetos. Dentro de um ano e meio, no máximo, Gurgel quer pôr para rodar o protótipo de um carro popular, "O carro do trabalhador brasileiro, algo entre automóvel e bicicleta, muito simples, mas de uma concepção revolucionária. Estou trabalhando nisso". Suas gavetas, arquivos e armários nas casas de Rio Claro e São Paulo (na verdade, ele e a família moram nas duas cidades), estão cheias de desenhos e rabiscos. Páginas de cadernos, capas de revistas, guardanapos de restaurantes, no papel que estiver mais próximo Gurgel desenha e anota o que lhe vem à cabeça. Depois, calhamaços de cálculos. Mais tarde, se a idéia for boa, a patente. "Temos uma quantidade fantástica de patentes. Atualmente, estou desenvolvendo um gerador eólico (movido a vento) e pesquisando a construção de residências à prova de som, para que se possa morar com sossego numa cidade barulhenta. O próximo passo, para mim, é entregar a direção da empresa a profissionais especializados e retirar daqui de dentro a parte criativa. Vamos construir um centro de pesquisa na chácara aqui ao lado e vender projetos para o governo ou outras empresas. A idéia que não puder realizar, eu vendo. A grande frustração do inventor e de quem trabalha em pesquisa é não ver realizado o que ele imaginou".
Gurgel fala de coisas como os projetos de carros estranhos, que se acumulam na sala de projetos: — Eu, na realidade, sou um misto de industrial, projetista e inventor — define-se Gurgel. — Sempre tive um lugar onde ganhar dinheiro e, ao lado, um outro onde gastar, fazendo o que eu queria fazer. Tem mil coisas que eu ainda gostaria de fazer, mas vejo que minha vida está acabando e não vou conseguir fazer nem uma fração delas. É um pouco angustiante, claro. As vezes eu acho que o melhor para mim seria ter ido trabalhar na Disneylândia, ou numa fábrica de
Se há alguém que acreditou no Brasil, esse é João Augusto Conrado do Amaral Gurgel. Ao longo de mais de 25 anos, e talvez contra todas as expectativas e circunstâncias, produziu mais de 40 mil veículos genuinamente brasileiros, perseguindo e concretizando seu sonho de construir um carro e uma indústria automobilística 100% nacionais. | |
João Gurgel ousou, sonhou, criou, produziu, empregou, vendeu, exportou e revolucionou. Foi um empresário capaz de conseguir independência tecnológica no Brasil, produzindo veículos nacionalizados e independentes do aporte de qualquer capital ou técnica externos. Os muitos veículos saídos de suas inteligentes linhas de montagem, e que ainda hoje rodam pelas vias do país, atestam isso. De personalidade controversa, reverenciado por muitos e criticado por tantos outros, Gurgel não se furtou a deixar claras e definidas suas posições e opiniões, o que certamente incomodou muita gente. | |
Por tudo isso, é de fundamental importância registrar sua vida e obra, o que fez brilhantemente Lélis Caldeira neste livro. Se gênio ou visionário, empreendedor ou utópico, bem-sucedido ou fracassado, não cabe aqui julgar. Mas não há dúvidas de que João Gurgel faz parte do rol das pessoas de fibra, que são lembradas por fazerem a diferença e marcarem o caminho por onde passaram. |
Gurgel apresenta sua nova loucura
Sem segredos, apresentamos o CENA, o novo projeto da Gurgel. Uma loucura? Veja o que fez e o que faz a maior montadora nacional e julgue você mesmo.
É uma sala arejada, com janelas amplas e portas sem trancas. Não há guardas por perto, nenhum esquema que impeça a entrada de eventuais espiões, como costuma ocorrer nos departamentos de estilo das grandes fábricas de automóveis. Dependurados nas paredes ou sobre as pranchetas dos desenhistas, ensaios coloridos de dianteiras, laterais, traseiras, circundam um painel branco com um desenho de um pequeno carro. Em que pesem as dimensões reduzidas - 2,90 m de comprimento por 1,50 m de altura -, trata-se de uma reprodução em tamanho natural. Não é nenhum segredo. Lá está o perfil do que promete ser o primeiro carro inteiramente brasileiro, o CENA. A sigla encerra o que seu criador, o engenheiro João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, espera de seu futuro produto: Carro Econômico Nacional.
Aos mais céticos, até mesmo para os realistas, é difícil imaginar que a empreitada possa dar certo. Se fosse homem de desanimar, entretanto, Gurgel não estaria comandando uma empresa que, arrancando praticamente do zero, em menos de duas décadas transformou-se num respeitável fabricante de jipes, utilitários e até carros elétricos - os pioneiros na América Latina. Obstáculos não faltaram nessa caminhada, a começar pelo professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo que ditou ao então quintanista de engenharia mecânica e elétrica uma frase que ele jamais esqueceria. "Carro não se fabrica, se compra", ouviu Gurgel, ao apresentar, como trabalho de fim de curso, o projeto de um carro de dois cilindros, no lugar do guindaste que o professor havia pedido. "Por que você não projetou uma coisa útil?", indagou o mestre.
O argumento era coerente com a época. Corria o ano de 1949, e o Brasil nadava em dólares, amealhados durante a Segunda Guerra Mundial. Aliados como os Estados Unidos, a Inglaterra ou a França já produziam carros. Por que então não importá-los e concentrar esforços em outros setores? A arenga do velho mestre, porém, não encontrou campo fértil para vicejar.
Gurgel nunca foi pessoa de desistir facilmente de seus planos. Guindastes, embora importantes para o nascente parque industrial do país, não eram coisas que motivassem aquele espírito irrequieto, que desde cedo elegera os automóveis como objeto de sua paixão. Assim, durou pouco no primeiro emprego, como engenheiro-chefe de reparação de locomotivas da Cobrasma, em São Paulo.
No começo, minicarros para crianças e o bug Ipanema. |
Diploma debaixo do braço, tocou-se para os Estados Unidos, para estudar no General Motors Institute - a escola de formação de quadros da maior indústria automobilística do mundo. Em 1953, formado em engenharia automobilística, com especialização no processo de plástico reforçado - material então revolucionário -, Gurgel passou para a Buick, uma das divisões da GM norteamericana. Não demorou e estava de volta ao Brasil, trabalhando no planejamento da fábrica da General Motors em São José dos Campos. Depois passou pela Ford do Brasil, como assistente de diretoria, até achar que estava na hora de retomar o antigo projeto de construir seu próprio carro. Começou modestamente, em 1958, literalmente pequeno, fabricando karts e minicarros para crianças - réplica dos Karmann-Ghia e das Corvette. Em 1966, conseguiu convencer a Volkswagen a, pela primeira vez em sua história, vender chassis para outra empresa. Com os chassis, começou a montar o Ipanema - uma simpática mistura de jipe e bug que, em 1969, já estava sendo produzido à razão de quatro unidades mensais. Nascia a Gurgel S.A. Indústria e Comércio de Veículos, que concentrou seus esforços iniciais nos utilitários, transformando-se, em menos de duas décadas, no único fabricante nacional de porte da indústria automobilística.
Uma família com três modelos: minicarro, jipinho e minifurgão.
É com essa credencial que Gurgel arranca para o projeto CENA, uma família que abrange, além do minicarro, para 4 passageiros, um jipinho - provisoriamente batizado de Bastião - e um minifurgão. A escolha pelos carros pequenos é realista. Gurgel reconhece as dificuldades que teria em tentar dividir o mercado dominado pelas gigantes da indústria automobilística. "Preferimos ficar num nicho próprio", diz ele, que via apenas duas brechas no mercado. "A primeira seria partir para um carro esporte, que deveria ser sofisticado e, conseqüentemente, caro. A outra seria um carro barato, um intermediário entre a moto e o menor carro normal."
O CENA será nosso carro mais barato: 30 mil cruzados. |
Motor de dois cilindros, refrigeração mista: ar e água.
A escolha recaiu sobre a segunda opção. "Os carros pequenos têm, hoje, motor de 1.300 cilindradas, quatro cilindros e pesam pelo menos 900 quilos", compara Gurgel. "Pois resolvemos cortar tudo isso pela metade: nossos carros terão motor de 2 cilindros, com 650 cilindradas e pesarão só 450 quilos." Só o preço é que não poderá ser dividido por dois. Assim mesmo, a previsão é que um CENA custaria hoje ao redor de 30 mil cruzados - contra 42 mil cruzados de um Volkswagen 1.300, o mais barato do mercado.
Com a experiência acumulada desde 1972 na fabricação de chassis de aço tubular e carrocerias de fibra plástica - uma tecnologia assimilada por Gurgel em sua passagem pela General Motors norte-americana, há três décadas, e constantemente aperfeiçoada na produção atual de cinco modelos, em mais de uma dezena de versões (veja o quadro branco, ao final desse texto) -, Gurgel não vê maiores problemas quanto ao chassis e à carroceria. O mais trabalhoso é o motor. Sua primeira idéia foi uma associação com a Citröen, francesa, para a produção no Brasil do legendário motor do 2 CV. E um motor de dois cilindros, refrigerado a ar, que faz até 25 km por litro. No caso do CENA, o rendimento poderia ser ainda maior, pois seu peso será menor que os 580 quilos do Citröen 2 CV. Contaria ainda a favor do motor francês o fato de já ter sido exaustivamente testado: existem mais de 10 milhões de unidades funcionando pelo mundo. Sua fabricação no Brasil, entretanto, acarretaria alguns problemas - o maior deles o fato de não haver no mercado nacional de autopeças sequer um parafuso compatível: todos os componentes teriam que ser produzidos especialmente, o que exigiria altíssimos investimentos.
O motor: dois cilindros contrapostos. | Nasce o protótipo do "Bastião". |
Camisas de borracha no lugar das de ferro fundido. |
Essa situação estimulou a Gurgel a partir para a fabricação de um motor inteiramente nacional, aproveitando o máximo possível de componentes já existentes no mercado. Este motor já está dimensionado, e pronto para entrar em testes. Será, como o 2 CV, um motor de dois cilindros contrapostos, com 650 cilindradas, usando um processo de refrigeração mista. Em baixa rotação, o arrefecimento é pela água, que circulará pelos cilindros no interior de camisas de borracha - uma inovação em termos mundiais, já que os invólucros dos cilindros costumam ser de ferro fundido. A vantagem da borracha, no caso, é uma redução de custo e, ao mesmo tempo, de peso. Com o carro andando em altas velocidades, entra em ação um sistema auxiliar de arrefecimento a ar, para ajudar a arrefecer os cabeçotes. Gurgel calcula que seu motor usará 80% de peças que já existem no mercado. Os restantes 20% constituem-se do bloco, virabrequins, cilindros e cabeçotes. Paralelamente ao motor, que já está quase pronto para entrar em testes, a Gurgel vai definindo outros elementos do projeto. No departamento de estilo, quatro projetistas, chefiados pelo ex-publicitário José Roberto Theobaldo, 40 anos, que já trabalhou na Ford e na própria Gurgel, ajudando no projeto do jipe Carajás, desenham as carrocerias dos três modelos da família CENA.
Theobaldo: Na prancheta, esboços do jipinhos "Bastião".
No futuro, carrocerias moldadas em plástico injetado. |
Todos esses modelos seguem o conceito dos space-cars (carro-espaço), que, em outras palavras, define um carro de um volume (para entender melhor: o Fiat Uno, por exemplo, é um dois-volumes, com o motor num compartimento e os passageiros em outro, e o Fiat Prêmio é um três-volumes, com três compartimentos distintos: motor, passageiros e porta-malas). No caso do CENA, a parte de cima e a de baixo do chassi formam um só conjunto, uma espécie de gaiola que, vista de lado, lembra a forma de um hexágono. A carroceria, de início em fibra de vidro, para o futuro poderá ser moldada em plástico injetado, numa só peça, em cores diversas, o que eliminaria a necessidade de pintura. Nas oficinas, sob o comando do engenheiro Ciro Krugner, 30 anos, mais uma dezena de técnicos trata de definir outros contornos do projeto. A suspensão, por exemplo, já está pronta. "É simples, leve e eficiente", comenta Krugner. "Devido ao pequeno peso do carro, podemos usar um sistema de amortecedores progressivo, por fricção, como o dos antigos Fordinhos. Funciona perfeitamente." As dimensões das carrocerias ainda estão em estudos. Para o minicarro, porém, os testes, feitos no interior de uma estrutura de arame, já definiram uma altura de 1,50m, e uma distância entre eixos de 1,85m - o suficiente para acomodar quatro passageiros, dois à frente e dois atrás. A tração igualmente já não apresenta dúvidas: será traseira, com o motor à frente.
O minicarro: estudo em arame, para definir os espaços.
"Apesar da tendência atual pela tração dianteira", argumenta Gurgel, "a tração traseira simplifica e barateia o carro, pois se evita o uso de pneus radiais e juntas homocinéticas, que são componentes muito caros."
Uma fabrica para os componentes e outras dez para a montagem.
A fábrica-piloto vai custar 70 milhões de cruzados. |
Se tudo correr de acordo com os planos de Gurgel, ainda no primeiro semestre poderá começar a rodar o primeiro protótipo do CENA. O início da produção efetiva, porém, depende da montagem de uma fábrica-piloto que não custará menos que 70 milhões de cruzados. Até a deflagração da reforma econômica, Gurgel estava negociando um empréstimo com a Finep - Financiadora de Estudos e Projetos, da Secretaria do Planejamento -, que seria amortizado através do pagamento de royalties sobre cada carro produzido. Os restantes 800 milhões de cruzados necessários para a instalação de todo o empreendimento, que no quinto ano poderá estar produzindo 5 mil carros por mês, ainda são objeto de estudos. Uma das opções de Gurgel é localizar a fábrica principal no Nordeste e conseguir financiamentos do Fundo de Investimentos do Nordeste (Finor). Essa unidade produziria todos os componentes, e a montagem final dos carros seria feita em outras dez fábricas instaladas em diversas regiões do país.
Pode parecer tudo apenas o sonho de um visionário. Afinal, outros já tentaram a fabricação de um carro brasileiro, simples, racional, barato - e ninguém até agora conseguiu levar adiante um projeto. Mas quem acreditava quando aquele engenheiro que montava jipinhos falava em criar um carro elétrico brasileiro, ou em montar uma indústria que, só no ano passado, despejou 1400 utilitários no mercado, parte dos quais exportados para 40 países? Gurgel já conseguiu mostrar que carro não só se compra, mas também se fabrica.
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FÁBRICA DE CARROS E TECNOLOGIA
Durante 1985, enquanto a indústria automobilística brasileira como um todo aumentava suas vendas em 12,8%, a Gurgel crescia 45,8%. Em número de unidades produzidas, a Gurgel alcançou a média de 113 veículos por mês, em sua grande maioria utilitários como os X-12. em suas várias versões. Com isso, a Gurgel passou a deter nada menos de 77% do mercado brasileiro de jipes. É uma marca expressiva para uma empresa inteiramente nacional, que começou produzindo minicarros para crianças.
Localizada em Rio Claro, no interior de São Paulo, a 170 quilômetros da capital, a Gurgel contraria qualquer idéia que se possa ter de uma indústria de fundo de quintal: de suas instalações, de 12 mil metros de área construída, saem diariamente entre 8 e 10 veículos. A maior parte da produção ainda é dos jipes X-12, mas também fazem parte da família Gurgel os jipes Carajás - um utilitário de grande porte, com motor Volkswagen Santana, lançado em 1985 -, as picapes e furgões da linha G-800, os carros elétricos (quadro amarelo) e o Xef, um minicarro de passeio.
A linha de montagem da Gurgel despeja entre 8 e 10 carros
por dia, entre eles os jipes X-12 e os Carajás, o mais
recente lançamento da empresa comandada pelo
engenheiro João Augusto Conrado do Amaral Gurgel.
Mais do que apenas uma simples montadora de peças fabricadas fora, a Gurgel também tem investido em tecnologia própria, o que lhe permite aplicar em seus carros inovações como o chassi de aço tubular, revestido com um composto especia1 de fibra de vidro, o que o torna imune à corrosão. As carrocerias também são produzidas a partir de um processo próprio denominado "plasteel" (plástico + aço), o que permite à Gurgel oferecer a maior garantia do mundo contra ferrugem: nada menos de 100 mil quilômetros.
Os carros da Gurgel dispõem ainda de um dispositivo, desenvolvido por seus técnicos, que substitui a tração nas quatro rodas. É a "Selectraction", mecanismo que permite ao motorista bloquear independentemente uma das rodas traseiras de tração que perca a aderência num terreno acidentado, por meio de uma alavanca localizada ao lado do assento do motorista. A força liberada passa para a outra roda, aumentando sua tração. Essas inovações já estão sendo experimentadas por consumidores de 40 países, para onde a Gurgel também exporta seus carros.
Gurgel Motores
A cidade de Rio Claro, no interior de São Paulo, já sediou uma importante indústria nacional de automóveis que em 25 anos produziu utilitários, carros urbanos e até elétricos. Foi fundada em 1º de setembro de 1969 pelo engenheiro mecânico e eletricista João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, que sempre sonhou com o carro genuinamente brasileiro. Devido às exportações que sua empresa passou a fazer com o sucesso dos produtos, ele sempre dizia que sua fábrica não era uma multinacional, e sim "muitonacional". O capital era 100% brasileiro.
Este homem dinâmico e de grandes idéias formou-se na Escola Politécnica de São Paulo em 1949 e, em 1953, no General Motors Institute nos Estados Unidos. Conta-se que, ao apresentar o projeto de um automóvel popular, o Tião, ao professor, teria ouvido: "Isto e coisa para multinacionais. Carro não se fabrica, Gurgel, se compra".
Gurgel começou produzindo karts e minicarros para crianças. Em 1969 fundou a Gurgel Veículos, seu primeiro modelo foi um bugue com linhas muito modernas e interessantes. Chamava-se Ipanema e utilizava chassi, motor e suspensão Volkswagen. Gurgel sempre batizou seus carros com nomes bem brasileiros e homenageava nossas tribos de índios.
Em 1973 chegava o Xavante, que deu início ao sucesso da marca. Este foi seu principal produto durante toda a evolução e existência da fábrica. De início com a sigla X10, era um jipe que gostava de estradas ruins e não se importava com a meteorologia. Sobre o capô dianteiro era notável a presença do estepe. Sua distância do solo era grande, o pára-brisa rebatia para melhor sentir-se o vento e a capota era de lona. Tinha linhas curvas, seguindo uma tendência dos bugues da época. Um par de pás afixadas nas portas chamava a atenção e logo anunciava o propósito do veículo.
O jipe era equipado com a tradicional, simples e robusta mecânica Volkswagen refrigerada a ar, com motor e tração traseiros. O acesso ao motor nunca foi dos mais favoráveis: era feito por uma tampa estreita e não muito comprida. O chassi era uma união de plástico e aço (projeto patenteado pela Gurgel desde o início de sua aplicação, denominado Plasteel), que aliava alta resistência a torção e difícil deformação. A carroceria era em plástico reforçado com fibra-de-vidro (FRP). Conta-se que, na fábrica, existia um taco de beisebol para que os visitantes batessem forte sobre a carroceria para testar a resistência. Não amassava, mas logicamente o teste pouco comum era feito antes de o carro receber pintura.
Pelo emprego destes materiais a corrosão estava completamente banida. A carroceria e o chassi formavam um só bloco. As rodas, as mesmas da Kombi, eram equipadas com pneus de uso misto. A suspensão, como no Fusca, era independente nas quatro rodas, em um conjunto muito robusto , mas na traseira a mola era helicoidal, em vez da tradicional barra de torção. Para subir ou descer morros não havia grande dificuldade. A carroceria tinha ângulo de entrada de 63 graus e 41 graus de saída.
Além do Plasteel, outro recurso interessante do Xavante era o Selectraction. Tratava-se de um sistema movido por alavancas, ao lado do freio de estacionamento, para frear uma das rodas traseiras. Era muito útil em atoleiros, pois freando uma das rodas que estivesse girando em falso - característica de todo diferencial - a força era transmitida à outra, facilitando a saída do barro. Com este sistema o carro ficava mais leve e econômico do que se tivesse tração nas quatro rodas e a eficiência era quase tão boa quanto.
O Xavante logo agradou ao público, por sair da concepção tradicional dos bugues, e ao Exército brasileiro, que fez grande encomenda. Havia uma versão militar especialmente produzida para este fim, o que deu ótimo impulso à produção. Na primeira reestilização, em 1975, as linhas da carroceria ficaram mais retas. O estepe agora ficava sob o capô, mas o ressalto neste anunciava sua presença. Sobre os pára-lamas dianteiros ficavam as lanternas de direção, idênticas às do Fusca.
Além do X10, mais simples, existia o X12, versão civil do jipe das forças armadas. O motor era o mesmo 1,6-litro de um só carburador, que fornecia 49 cv e usava a relação de diferencial mais curta do Fusca 1300 (4,375:1 no lugar de 4,125:1). Atrás das portas havia uma pequena grade plástica para ventilação do motor. A velocidade final não chegava a empolgar: fazia no máximo 108 km/h e de 0 a 100 km/h levava penosos 38 s. Mas seu objetivo era mostrar serviço e desempenho com relativo conforto em caminhos difíceis, pouco apropriados a carros de passeio.
Sua estabilidade era crítica em ruas de asfalto ou paralelepípedo. Nas pistas, ruas e estradas era melhor não arriscar nas curvas. O jipe gostava mesmo de lama, terra, água, neve, praia, montanha e floresta, que eram seu hábitat natural. Era fácil de estacionar, de dirigir e de domar. Por causa de todo o conjunto muito robusto, era um veículo barulhento para o dia-a-dia.
Em 1974 a Gurgel apresentava um pioneiro projeto de carro elétrico. O Itaipu, alusão à usina hidrelétrica, era bastante interessante: ótima área envidraçada, quatro faróis quadrados e um limpador sobre o enorme pára-brisa, que tinha a mesma inclinação do capô traseiro. Visto de lado, era um trapézio sobre rodas. Era um minicarro de uso exclusivamente urbano para duas pessoas, fácil de dirigir e manobrar, que usava baterias recarregáveis em qualquer tomada de luz, como um eletrodoméstico.
Ele teria tudo para dar certo se não fosse os problemas a com durabilidade, capacidade e peso das baterias, o que até hoje ainda é um desafio. Um dos modelos elétricos se chamaria CENA, carro elétrico nacional, nome que ressurgiria no projeto do BR-280/800, com o "E" representando econômico".
Em 1976 chegava o X12 TR, de teto rígido. Suas linhas estavam mais retas e ainda transmitiam respeito; continuava um utilitário bastante rústico. Os faróis redondos agora estavam embutidos na carroceria e protegidos por pequena grade. Na frente destacava-se o guincho manual com cabo de 25 metros de extensão, por sistema de catraca, para situações fora-de-estrada. Na traseira, sobre a pequena tampa do motor, havia um tanque de combustível sobressalente de 20 litros ou, como alguns gostavam de chamar, camburão. Era um dispositivo útil e bem-vindo para as aventuras fora-de-estrada. Na frente, o pequeno porta-malas abrigava o estepe e o tanque de combustível de 40 litros. Para as malas havia quase nenhum espaço, e o painel, muito simples, continha o estritamente necessário.
X12 TR
O chassi Plasteel continuava como padrão, e a fábrica oferecia uma garantia inédita de 100.000 quilômetros. Fato interessante é que todo Gurgel tinha carrocerias originais: o engenheiro nunca copiou nada em termos de estilo, coisa corriqueira hoje em dia entre fabricantes de veículos fora-de-estrada. Em 1979 toda a linha de produtos foi exposta no Salão do Automóvel de Genebra, na Suíça. Neste evento a propaganda do jipe nacional e o volume de vendas foram muito bons.
Em 1980, depois de cinco anos de estudo, outro veículo de tração elétrica, o Itaipu E400, ia para os primeiros testes. Tratava-se de um furgão com desenho moderno e agradável. Sua frente era curva e aerodinâmica, com amplo pára-brisa e pára-choque largo com faróis embutidos. Nas laterais havia somente os vidros das portas e os quebra-ventos; o resto era fechado. O painel era equipado com velocímetro, voltímetro, amperímetro e uma luz-piloto que indicava quando a carga estava por acabar. As baterias eram muito grandes e pesadas, cada uma com 80 kg e 40 volts. O motor elétrico era um Villares de 8 kW (11 cv) e girava a 3.000 rpm máximas. Apesar da potência ínfima, os elétricos conseguem boa aceleração porque o torque é constante em toda a faixa útil de rotações. Tinha câmbio de quatro marchas, embreagem e transmissão.
O consumo, se comparado a um carro a gasolina, seria de 90 km/l, mas a autonomia era pequena, de apenas 80 quilômetros. Para recarregar eram necessárias em média 7 horas numa tomada de 220 volts. Devido a este fator, era um veículo estritamente urbano. A velocidade máxima estava por volta de 80 km/h em grande silêncio, uma das grandes vantagens de um carro elétrico é não poluir com gases nem com barulho.
Primeiramente ele foi vendido a empresas para testes. Depois da versão furgão viriam a picape de cabines simples e dupla e o E400 para passageiros. O E400 CD (cabine dupla) era um misto de veículo de carga e passageiros, lançado em 1983. Com a mesma carroceria foi lançado um modelo com motor Volkswagen "a ar" e dupla carburação, que tinha a denominação G800. Ele trazia a mesma robustez e muito espaço interno para passageiros. Na versão CD havia um detalhe curioso: três portas, duas na direita e a outra na esquerda para o motorista. Do mesmo lado, atrás, vinha um enorme vidro lateral. Ganhava o passageiro que se sentasse deste lado, pois tinha ampla visibilidade. O G800 pesava 1.060 kg e podia carregar mais 1.100kg, sendo um utilitário valente e robusto.
G 800
Em 1980 a linha era composta de 10 modelos. Todos podiam ser fornecidos com motores a gasolina ou álcool, apesar de o engenheiro Gurgel combater muito o combustível vegetal. O álcool era subsidiado pelo governo, o que tornava o preço final para o consumidor mais baixo que a gasolina. Esta era a única forma de estimular o uso de um combustível que, pelo menor poder calorífico, resulta em um consumo cerca de 30% maior. O engenheiro achava que seria mais coerente usar essas terras para plantar alimentos para a população do que para alimentar veículos. Mais tarde ele poria fim às versões a álcool na marca.
Faziam parte da linha o X12 TR (teto rígido), o jipe comum com capota de lona (que era a versão mais barata do X12), o simpático Caribe, a versão Bombeiro, o X12 RM (teto rígido e meia capota) e a versão X12 M, militar. Este ultimo, exclusivo para as Forças Armadas, já vinha na cor-padrão do Exército, com emblemas nas portas e acessórios específicos. Numa outra faixa de preço havia o monovolume X15 TR de quatro portas,a picape cabine-dupla CD, a versão cabine-simples (CS), o cabine-simples com capota de lona e o Bombeiro. As versões Bombeiro de ambos modelos eram equipadas com luzes giratórias sobre o teto. Outros acessórios específicos também já saíam de fábrica para estas versões.
O X15, lançado em 1979, era um furgão com estilo bastante original. Parecia um veículo militar de assalto, um pequeno carro-forte. Logo teria versões picape de cabine simples e dupla. O furgão podia transportar até sete pessoas, ou duas e mais 500 kg de carga. Como os demais, usava a mecânica VW "a ar". Todos os vidros da carroceria, inclusive o pára-brisa, eram planos, sem nenhuma curvatura. Na frente muito inclinada, o pára-brisa era dividido em dois vidros, sendo que um deles, em frente ao motorista, ocupava 3/4 de toda a área frontal na versão militar (na civil os vidros tinham a mesma largura). Nesta versão também havia o guincho, faróis protegidos por grade, pequenas pás afixadas nas portas e capota de lona. Seu ângulo de entrada e saída para enfrentar rampas acentuadas era tão bom quanto o do X12. Tinha um ar muito robusto, com 3,72 m de comprimento, 1,90 m de largura e a altura total de 1,88 m, era um tijolo sobre rodas. Os faróis eram embutidos no largo e ameaçador pára-choque preto.
Em 1981, como novidade bem-vinda, os freios dianteiros no X12 passaram a ser a disco e a suspensão dianteira estava mais robusta. Novos detalhes de acabamento também o deixaram mais "luxuoso". Para o X15 era lançada a versão Van-Guard. Atrás dos bancos dianteiros havia dois colchões com revestimento plástico estampado, que combinavam com pequenos armários embutidos. Cortinas nas janelas e até um ventilador completavam o ambiente descontraído. O carro tinha um visual hippie. Na parte externa, faixas triplas e grossas nas laterais e o estepe fixado na traseira com cobertura nos mesmos tons da carroceria. Tinha só duas portas e, nas laterais, um vidro basculante retangular grande. Ideal para quem curtia acampar e programas ecológicos. Nesta versão ele ficou menos sisudo.
Também foi lançado o G15 L, picape cabine-simples mais longa (3,92 m) derivado do X15, que podia transportar até uma tonelada de carga. O tanque de combustível era de 70 litros e podia receber outro de mesma capacidade para aumentar a autonomia (vigorava então o absurdo e ineficiente regime de postos fechados nos fins de semana). Além da versão padrão, havia a cabine-dupla de duas ou quatro portas e a furgão.
G15 L
A valente empresa nacional crescia. A fábrica tinha uma área de 360 mil m2, dos quais 15 mil eram construídos. Contava com 272 empregados entre técnicos e engenheiros, que dispunham de assistência médica e transporte. Só era menor em número de funcionários do que a Puma, no que se referia a pequenos fabricantes.
Em 1977 e 1978, a Gurgel foi o primeiro exportador na categoria veículos especiais e o segundo em produção e faturamento. Cerca 25% da produção seguia para fora do Brasil. Eram fabricados 10 carros por dia, sendo o X12 o principal produto da linha de montagem. A unidade de negócios era o Gurgel Trade Center, numa importante avenida da capital paulista. Havia um escritório executivo e um grande salão de exposição, além de um centro de apoio técnico aos revendedores.
No final de 1981 era desenvolvido o modelo Xef. Com duas portas e três volumes bem definidos, era um carro urbano bastante interessante. Contava com três bancos dianteiros, recurso pouco comum já aplicado no francês Matra Baghera. Mas este ultimo era um esportivo. Três adultos de boa estatura acomodavam-se com dificuldade e o acesso era digno de contorcionistas. O espaço para bagagem era mínimo.
Xef
Em 1982 o X12 normal seguia seu caminho na produção e nas estradas de terra, lama e areia do Brasil. Com a mesma carroceria mais reta da versão de teto rígido (TR), continuava com o pára-brisa dobrável e a capota de lona presa com botões de pressão. Os retrovisores externos e internos eram fixados na estrutura do pára-brisa. Tudo muito prático e simples. A carroceria agora recebia uma faixa branca que contornava a porta e o pára-lama. As portas eram de plástico reforçado. O pequeno e simpático jipe recebia opcionalmente rodas esportivas, brancas e bonitas, de 14 pol (pneus 7,00 x 14) no lugar das originais de 15 pol. Na versão Caribe a capota e os bancos eram listrados com cores vivas e alegres, que combinavam com a carroceria no mesmo tom, e as rodas brancas eram de série.
Em 1983 a versão de teto rígido do X12 recebia uma clarabóia no teto, bastante útil para refrigerar a cabine. Um defeito na versão TR que jamais foi sanado era que sua porta era presa ao pára-lama dianteiro por dobradiças. Qualquer um armado com uma chave Phillips podia desmontar a porta, entrar no jipe para roubar objetos ou mesmo dar uma voltinha com ele.
No modelo 1985 as novidades externas eram nova grade, pára-choques e lanternas traseiras. Por dentro o painel e o volante também eram mais modernos. A versão de luxo contava com bancos com encosto alto alem da clarabóia. Na parte mecânica vinham como novidade ignição eletrônica, nova suspensão traseira e diferencial com outra relação, que o deixou mais veloz em rodovias, econômico e silencioso. No mesmo ano a VW introduziu no Fusca a relação 3,875:1 como parte do pacote que objetivava redução de 5% no consumo médio de combustível. Como a Gurgel dependia do fornecimento da VW, a modificação foi estendida ao X12.
No ano anterior, a Gurgel lançava o jipe Carajás, outro nome indígena. As versões eram TL (teto de lona), TR (teto rígido) e MM (militar). Versões especiais ambulância e furgão também existiram. Um detalhe que logo chamava a atenção era o grande estepe sobre o alto capô dianteiro, solução inspirada nos Land Rovers que prejudicava a visibilidade frontal. De frente era notável a grade preta com quatro faróis retangulares, iguais aos do Passat. Opcionalmente podia vir com o guincho.
Carajás
O Carajás era um jipão na melhor definição. Chamava a atenção por onde passasse. Tinha duas portas laterais e uma traseira com abertura meio a meio. Sobre o teto, uma clarabóia para ventilar a cabine. Dentro havia um forro duplo do teto, com cinco difusores de ar, dois para os passageiros da frente e três para os de trás - e funcionava bem. Sobre o teto, como opcional, era oferecido um enorme bagageiro.
A carroceria, em plástico reforçado com fibra-de-vidro, tinha sempre cor preto-fosco no teto. O detalhe podia mascarar sua altura, mas concorria para aquecer o interior. Os bancos dianteiros, com encosto para cabeça, corriam sobre trilhos e facilitavam a entrada de passageiros atrás. A posição de dirigir era boa só para as pessoas mais altas.
O chassi Plasteel também estava presente, junto com o sistema Selectraction. O motor dianteiro de 1,8 litro e 85 cv, refrigerado a água, era o mesmo do Santana e podia ser a álcool ou a gasolina. Depois veio a versão com motor diesel de 1,6 litro e 50 cv, também refrigerado a água e usado na Kombi. Um detalhe mecânico interessante era o TTS.
Para transmitir a força do motor para as rodas traseiras, era usado o Tork Tube System, um tubo de aço, com uma árvore de transmissão de aço em seu interior, que interligava o motor dianteiro ao conjunto traseiro de embreagem, câmbio, diferencial e semi-árvores. Uma ótima solução, encontrada pelo fato de o Carajás usar quase todo o conjunto mecânico do Santana, que é de tração dianteira. A caixa de mudanças, entretanto, era de Volkswagen "a ar".
O sistema era novidade no país, baseado num transeixo, ou transmissão e diferencial juntos, instalados na traseira de um veículo de motor dianteiro. Mas mostrou-se frágil, pois era muita potência do motor 1,8-litro transmitida para o conjunto traseiro previsto para motores 1,6 refrigerado a ar. A embreagem situava-se na dianteira do veiculo, junto ao volante motor, sendo um defeito relevante, pois a troca de marcha deveria ser feita com um tempo maior em relação a outros veículos, devido a inércia do conjunto TTS com o eixo primário da caixa de transmissão.
A suspensão do Carajás era independente nas quatro rodas. Na frente era utilizado o conjunto de eixo dianteiro da Kombi, enquanto na traseira a disposição era de braço semiarrastado com mola helicoidal. Apesar das dimensões e do peso do carro, era confortável, ótimo de curva, de rodar macio e tranqüilo no asfalto ou em terrenos difíceis. Sua capacidade de carga era de 750 kg.
Em 1988 eram apresentadas as versões VIP e LE do Carajás. As mudanças eram na porta traseira, agora numa peça só; nas maçanetas, capô e grade frontal, que passava a fazer parte da carroceria. Na VIP as rodas eram cromadas, os vidros fumê, a pintura metálica acrílica e os bancos tinham melhor revestimento. Mas o Carajás era caro para o público e não alcançou o sucesso esperado.
Em 1986 o nome do X12 havia foi trocado por Tocantins, acompanhado de ligeira reforma estética. O veiculo passou a apresentar linhas mais modernas, mas ainda lembrando bem suas origens. Ele deixou de ser fabricado em 1989.
X12 Tocantins
Devido às exportações para o Caribe, o X12 atrapalhou e encerrou a produção do VW 181, utilitário de conceito similar feito pela filial mexicana da Volkswagen. As relações com a fábrica alemã, que eram ótimas, foram abaladas, mas o próprio Gurgel não queria ficar atrelado à VW a vida toda. Ele queria voar mais alto, e quase conseguiu.
Além dos utilitários, Gurgel sonhava com um minicarro econômico, barato e 100% brasileiro para os centros urbanos. Em 7 de setembro de 1987, segundo ele, dia da independência tecnológica brasileira, foi apresentado o projeto Cena, "Carro Econômico Nacional", ou Gurgel 280. Este era o primeiro minicarro da empresa, projetado para ser o mais barato do país. Os motores, de configuração única no mundo, eram como os VW 1.300 e 1.600 cortados ao meio: dois cilindros horizontais opostos, 650 ou 800 cm3 , mas refrigerados a água. A potência seria de 26 ou 32 cv conforme a versão.
O carro seria lançado em opções 280 S, de sedã, e 280 M, de múltiplo, com capota removível - restariam, porém, as molduras das portas e vidros laterais, bem como uma barra estrutural do teto. Solução interessante era o porta-luvas, uma maleta executiva que podia ser removida. Com a evolução do projeto, o motor menor foi abandonado e a cilindrada fixada em 0,8 litro, originando o nome BR-800. O motor fundido em liga de alumínio-silício era batizado como Enertron e projetado pela própria empresa. Este motor foi inteiramente pesquisado e desenvolvido pela Gurgel no Brasil, e ainda contou com elogios de marcas consagradas, como a Porshe, Volvo, Citroën e vários especialistas em motores.
BR-800
O avanço de ignição era controlado por um microprocessador (garantido durante cinco anos) e não havia necessidade de distribuidor, pois o disparo era simultâneo nos dois cilindros, idéia aproveitada dos motores Citroën de disposição semelhante. O sistema de ignição era outra patente da Gurgel.
Motor Enertron
O pequeno motor reunia alguns aspectos notáveis. Por exemplo, podia ser levado a praticamente 6.000 rpm sem flutuação de válvula (fechamento incompleto devido à velocidade excessiva), o que o motor VW não tolerava, mal passando de 5.000 rpm. A refrigeração a água com ventilador elétrico funcionava muito bem. A velocidade máxima era de 117 km/h.
Gurgel, sempre querendo incorporar avanços, idealizou o motor sem correia trapezoidal para acionar acessórios, como o alternador, visando facilidade de manutenção, preocupação nada desprezível. Para isso, o alternador era acoplado diretamente ao comando de válvulas. Só que devido à rotação do comando ser metade da do motor, o alternador não desenvolvia potência suficiente em várias condições de uso, como todos os acessórios ligados ao dirigir moderadamente. O resultado era a descarga da bateria, uma inconveniência e tanto para o motorista. Assim, a fábrica não demorou para voltar atrás e modificar a montagem do alternador, que passou a receber movimento do motor pela maneira tradicional de polias e correia trapezoidal, e com redução apropriada (cerca de 2:1), resolvendo definitivamente o problema.
O BR podia transportar quatro passageiros com relativo conforto e 200 kg de carga. Pesava 650 kg, tinha duas portas e vidros corrediços, o que prejudicava a ventilação da cabine. Para guardar objetos no pequeno porta-malas, abria-se o vidro traseiro basculante, que servia de porta; o acesso não era dos mais cômodos. Ainda assim era melhor do que a solução original de vidro traseiro fixo, em que era preciso acessar aquele compartimento por dentro do carro, como no Fusca. Por outro lado, o estepe tinha acesso muito pratico por fora, em uma tampa traseira.
O Governo Federal, num louvável gesto de apoio à indústria nacional, concedeu ao carrinho o direito de pagar apenas 5% de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), enquanto os demais carros pagavam 25% ou mais dependendo da cilindrada. O objetivo de projetar um carro com o preço final de US$ 3000 não se concretizou, o preço acabou ficando por volta de US$ 7000, mas graças ao incentivo fiscal, ainda era cerca de 30% mais barato que os compactos de outras montadoras, a exemplo da época poderíamos citar o FIAT Uno.
Lançado em 1988, foi produzido até 1991. De início, a única forma de compra era a aquisição de ações da Gurgel Motores S/A, que teve a adesão de 8.000 pessoas. Sob uma campanha convidativa - "Se Henry Ford o convidasse para ser seu sócio, você não aceitaria?" -, foram vendidos 10.000 lotes de ações. Cada comprador pagou os US$ 7.000 pelo carro e cerca de US$ 1.500 pelas ações, o que se constituiu um bom negócio para muitos - no final de 1989 havia ágio de 100% pelas mais de 1.000 unidades já produzidas.
Em 1990, quando o BR-800 começava a ser vendido sem o pacote compulsório de ações, quando parecia estar surgindo uma nova potência (tupiniquim) no mercado automobilístico, o Governo isenta todos os carros com motor menor que 1000cm3 do IPI (numa espécie de traição à Gurgel). Assim a Fiat, seguida por outras montadoras, lançou quase que instantaneamente o Uno Mille com o mesmo preço do BR-800, mas que oferecia mais espaço e desempenho.
Tentando reagir a Gurgel lança em 1992 uma evolução do BR-800, o Supermini. Tinha um estilo muito próprio e moderno. Media 3,19 m de comprimento, sendo ainda o menor carro fabricado aqui. Estacionar era com ele mesmo, devido à pequena distância entre eixos (1,90 m) e uma direção leve. Tinha faróis quadrados, grade na mesma cor do carro, duas portas, dois volumes e boa área envidraçada. As linhas eram mais equilibradas que em seu antecessor.
Supermini
A carroceria era em plástico FRP e tinha garantia de 100 mil quilômetros, alta resistência a impactos e, como tradição da fábrica, estava livre da corrosão. Era montada sobre um chassi de aço muito bem projetado e seguro, bem resistente à torção. Os pára-choques dianteiro e traseiro, assim como a lateral inferior, vinham na cor prata.
chassi
O Supermíni usava o mesmo motor bicilíndrico, só que um pouco mais potente (3cv a mais). Todo o conjunto motriz tinha garantia de fábrica de 30 mil quilômetros. Os vidros dianteiros não eram mais corrediços nem tinham quebra-ventos, e agora havia uma verdadeira tampa de porta-malas. O banco traseiro bipartido possibilitava o aumento da capacidade do porta-malas. O consumo era baixo. Fazia 14 km/l na cidade e, a uma velocidade constante de 80 km/h, até 19 km/l em quarta marcha.
Como destaques tinha motor com suspensão pendular, com coxim em posição elevada. A suspensão dianteira já não era mais a Springshock do BR-800 - mola e amortecedor combinados, fabricados na própria Gurgel, que apresentavam enorme deficiência -, mas uma disposição convencional de braços transversais superpostos com mola helicoidal. A traseira era por segmento de feixe de molas longitudinal. A versão SL trazia como equipamentos de série conta-giros, antena de teto, faróis com lâmpadas halógenas e rádio/toca-fitas. Até junho de 1992, 1.500 unidades do Supermini haviam sido vendidas.
Pouco depois a Gurgel mostrava o Motomachine, veículo bastante interessante. Acomodava dois passageiros e usava, entre outras peças, o mesmo motor do Supermíni. Tinha para-brisa rebatível, e tanto o teto de plástico quanto as portas em acrílico transparente eram removíveis. Era um carro de uso restrito, feito para a curtição ou o transporte básico nos grandes centros. Poucas unidades circulam e são dignas de apreciação e curiosidade.
O próximo projeto, batizado de Delta, seria um novo carro popular que usaria o mesmo motor de 800cm3 e custaria entre US$ 4000 e US$ 6000, mas não chegou a ser fabricado. Gurgel chegou a adquirir todas as máquinas-ferramenta que acabaram não sendo usadas.
Atolada em dívidas e enfraquecida no mercado pela concorrência das multinacionais, a Gurgel pediu concordata em junho de 1993. Houve uma última tentativa de salvar a fábrica em 1994, quando a Gurgel pediu ao governo federal um financiamento de US$ 20 milhões, mas este o foi negado, e a fábrica acabou fechando as portas no final do ano.
Sem dúvida o grande engenheiro João Gurgel deixou seu legado na indústria nacional. Foi um homem à frente do seu tempo, corajoso e patriota que infelizmente não conseguiu suportar sozinho a concorrência das grandes multinacionais.
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